Saúde pública leiloada
Funcionários públicos, economistas, juristas e parlamentares avaliam os problemas da privatização da saúde no Estado de São Paulo via transferência da administração para as Organizações Sociais. A mercantilização gera prejuízos aos usuários sem comprovar economia aos cofres públicos.
Por Débora Prado
Unidades com pintura fresca, recepção, cafezinho e promessa de pouca fila. A transferência de grande parte da gestão de hospitais, ambulatórios e laboratórios no Estado de São Paulo para a iniciativa privada foi anunciada pelo governo como uma solução inovadora para o déficit da saúde pública. Com mais flexibilidade e eficiência, esses ‘empreendedores filantrópicos’ são experts na otimização e gerenciamento de recursos, melhorando o atendimento à população com menor custo, certo? Errado. A mercantilização da área tem gerado prejuízos para os funcionários e pacientes, já foi alvo de pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa paulista e despertou a ira do CNS (Conselho Nacional de Saúde), sem comprovar que haja de fato economia para os cofres públicos.
As denúncias vêm de diversos lados: trabalhadores da saúde relatam instabilidade e assédio moral; no atendimento, o sistema de metas numéricas impostas de cima para baixo prejudica a atenção às necessidades locais da população; juristas contestam a constitucionalidade da medida, especialistas duvidam da capacidade do Estado fiscalizar o custo dos serviços nas unidades, após a transferência da gestão para o setor privado. Com um processo pouco transparente de terceirização, ainda há suspeitas de favorecimento financeiro e político sendo apuradas pelo CNS.
A Constituição Federal, com a implementação do SUS (Sistema Único de Saúde), prevê que a saúde deve ser totalmente pública e é vetada a transferência de propriedade do Estado para o setor privado. Com isso, a saída encontrada para incluir a área na onda de privatizações promovidas a partir da década de 1990 no Brasil foi pelos serviços. Inúmeros hospitais públicos terceirizam desde os serviços menos complexos, como segurança e limpeza, até serviços como a radiologia e o próprio atendimento médico. O principal instrumento para promover a privatização da saúde no País, entretanto, foi a entrega da gestão de hospitais para as Organizações Sociais de Saúde (OSS) – com destaque para o Estado de São Paulo, que se tornou o grande flanco desse modelo.
“As OSS vieram com uma promessa de renovar, de melhorar um quadro em que tudo estava muito antigo – desde a estrutura até os profissionais, que não tinham incentivos pra atualização. Mas, é difícil dizer que melhorou, esse modelo mercantilizou mais a questão da saúde e estimulou a competitividade. Você passa a ter uma noção de que a saúde é número, é meta, porque a meta representa produção e a produção dá visibilidade. Acho que sumiu a qualidade, aquela ideia da saúde pública com um sentimento mais integral e transdisciplinar”, avalia uma enfermeira que já passou por diversas OSS na cidade de
São Paulo e prefere não se identificar.
A Lei Complementar número 846/1998 regulamenta a remuneração que cada OSS receberá e prevê que o montante deve ser proporcional ao percentual das metas cumpridas. É justamente aí que reside o primeiro problema, conforme relata a enfermeira. Ela avalia que os investimentos em insfraestrutura poderiam ter sido feitos sem a transferência da gestão para a iniciativa privada, pois este sistema de metas penaliza os trabalhadores e os usuários.
“Você tem que atingir a meta, além de fazer o trabalho administrativo e ainda fazer os projetos que a OSS quer pra ter mais visibilidade, como de reciclagem. Tudo isso em um tempo recorde e muito centrado em patologia. Por exemplo, a população num local pode ter o maior risco para sua saúde por uso de drogas e isso não vai importar, as metas são focadas em hipertensão, diabetes, gestantes, crianças e idosos. Os números estão muito longe da realidade”, conta.
As metas são instituídas no contrato com o Estado e podem variar de acordo com o programa em que a unidade se insere. A remuneração
varia de acordo com cada unidade e convênio e, legalmente, as administradoras não podem ter fins lucrativos, apesar de decidirem a destinação de gordas fatias do orçamento público. O profissional, normalmente, é avaliado por um número de atendimentos realizados ou visitas domiciliares. No caso da enfermeira, cuja equipe se enquadra no Programa Saúde da Família, é pedido 192 consultas e 32 visitas mensais, enquanto dos médicos que trabalham com ela são requeridas 400 consultas/mês e 42 visitas domiciliares.
“Vira realmente um mercado, assim como o McDonald’s, tem o funcionário do mês, aquele que mostrou mais números, mesmo que ele não tenha trabalhado de acordo com as necessidades da população. E se você questiona, pode ser demitido, tenho vários amigos que perderam o emprego. O assedio moral é muito grande”. Ela relata casos de racismo e pressões para que profissionais não tornassem públicos os problemas dentro da OSS para não haver um marketing negativo para a gestora.
Já para os médicos, as OSS se tornam um localde passagem. “Falta médico no mercado para trabalhar com pobre, a rotatividade é muito grande. Eles ficam lá até conseguir algo melhor. Normalmente, o salário é alto, e, ainda assim, em 3 anos tive 6 médicos diferentes na minha equipe”, conta.
Por outro lado, pode faltar recursos básicos, como curativos e materiais para fazer sutura. Um funcionário de uma Organização Parceira conta que faltam materiais mínimos na sua unidade, como um aparelho de medir pressão. Isto porque, se este item não está previsto no convênio firmado, ele não é comprado pelo administrador privado, pois não haverá o reembolso do Estado.
Este funcionário avalia que a aparência mais nova das unidades geridas pelas organizações privadas agrada uma parte da população, mas assegura que o atendimento piorou bastante. “As metas são indicadores de produção, o problema é que elas aparecem de cima pra baixo, não são discutidas com a região, não levam em consideração a conjuntura e as necessidades locais. E o profissional é tão ameaçado e pressionado, que ele entra numa dinâmica de não dar conta e aí troca de unidade. Então tem uma rotatividade muito grande de profissionais, principalmente médicos, e isso prejudica o vínculo de quem está lá com a população local”, lamenta.
Para ele, isto faz muita diferença. “Tem questão, por exemplo, que é de saúde mental. Uma pessoa pode ir todo dia à unidade relatar um problema diferente e ele fica passando por procedimentos padrões, faz várias consultas, por não ter um profissional que se envolva com o local e perceba que o problema é de outra ordem”, exemplifica.Não é novidadeAs denúncias relatadas hoje já haviam sido alvo de investigação em 2007, numa sub-relatoria da CPI da Saúde realizada pela Assembleia Legislativa de São Paulo. O relatório final da Comissão, de autoria do deputado estadual Hamilton Pereira (PT), afirma:
“A gestão por cumprimento de metas, por processos e por produtividade utilizados nas Organizações Sociais gera uma situação de instabilidade para os trabalhadores por elas contratados ocasionando uma superexploração. (...) Outra questão grave foi o problema de ‘quarteirização’, a terceirização ou contratação de empresas por parte das OS’s, encontradas em todos os hospitais (...) Diante do quadro apurado, constata-se que o chamado ‘melhor desempenho’ dos Hospitais geridos por Organizações Sociais de Saúde pouco significam na prática. A conclusão a que se chega, na presente questão, é que o frágil controle do Estado sobre essas entidades e sobre a execução da assitência à saúde, aliada à grave precarização do trabalho nas OS’s, justifica a necessidade de um processo de reversão da gestão (...)”.
Apesar disso, o total de hospitais gerenciados pelas organizações subiu de 13, em 2007, para 22, em julho deste ano, de acordo com a apuração do CNS. O relatório do deputado estadual Raul Marcelo (PSOL), Sub-Relator de Organizações Sociais da CPI, apontou também para a necessidade de uma CPI específica para investigar as relações entre as OSs e o governo do PSDB, em São Paulo, mas como o partido tem maioria na Alesp, a denúncia não foi adiante.
“A bancada do PSDB dificultou ao máximo a criação da sub-relatoria para investigar as OSs, no entanto, conseguimos aprovar num cochilo da base do Governo, quando da votação do nosso requerimento. Mas, a situação mudou completamente na votação do nosso relatório e das suas respectivas conclusões e propostas, porque além das denúncias de falta de transparência, participação e controle social sobre estes hospitais, também propusemos o retorno dos hospitais entregues às OSs para a administração direta. Isso é possível do ponto de vista administrativo e comprovamos em nosso relatório, para alterar o projeto de privatização hoje em curso no nosso Estado. Mas todas nossas propostas sofreram limitação total”.
Em 2007, o deputado visitou 7 dos 13 hospitais geridos por OSS. O quadro apurado não mudou: uma OSS, normalmente, gerencia várias unidades, todas terceirizam algum tipo de serviço, contratando empresas sem licitação, e o sistema de metas para medir a transferência de recursos é, no mínimo, questionável - situação que se agrava pela ausência de um mecanismo de fiscalização que contemplasse a participação dos usuários e funcionários. Seu parecer concluiu:
“A terceirização, dentro das Organizações Sociais, ocasionam graves prejuízos à qualidade do ambiente de trabalho dos funcionários, caracterizados por desvio de função, sobrecarga de serviços e usual assédio moral e alta rotatividade quanto às empresas terceirizadas. As terceirizações também não estão submetidas a algumas regras da administração pública como a lei de licitações, fundamental à transparência dos serviços prestados pelo Estado ou para o Estado. Essa falta de transparência pode inclusive proporcionar uso indevido dos recursos públicos, que foi o teor de uma série de denúncias recebidas sobre processos de terceirização nos hospitais da dministração superfaturamento de contratos, prestação de serviço aquém do contratado, favorecimento individual, dentre outros.”